terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

A noite de Mô – Diário de Pernambuco

Pivô do Sport entrou nos oito minutos finais da partida e marcou o ponto com sabor de título

Lucas Fitipaldi - Diario de Pernambuco

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Tinha tudo para ser monótono, não fosse por Mô. Não fosse por Seu Adilson, o pai que jamais tinha visto a filha em ação como atleta profissional. Adilson Santana Oliveira, ou simplesmente “Pelé”, consentiu ao apelo. Ontem, o pedreiro chegou em casa mais cedo. O motivo era especial.
Classificado em primeiro lugar às semifinais da Liga Nacional, o Sport apenas cumpria tabela, contra o Guarulhos. A 17 segundos do fim, vencia por mais de 30 pontos de vantagem. Chance zero de derrota. Mas ontem, o resultado era o que menos importava. A causa era infinitamente mais nobre.
A menina nascida e criada na favela do Caranguejo, enfim, tinha o pai perto. Um desejo revelado com choro, coisa rara na vida de Mô. Seu Adilson chegou acompanhado por Dona Nadja, a mãe. O casal torceu junto, sofreu junto, curtiu junto, emocionou-se junto, ainda que separado por alguns metros.

Faltavam oito minutos para o fim quando Mô entrou em quadra. Apenas a segunda aparição da pivô em toda a primeira fase. Contra Ourinhos, em São Paulo, até o repórter de televisão comemorou junto com o banco rubro-negro a então única cesta de Mô. Parecia gol. Os primeiros dois pontos da menina-mulher-guerreira, que bateu na porta do clube pela primeira vez aos 14 anos e pediu para jogar basquete.
Ontem, os minutos passaram depressa depois da entrada da camisa 11. Emoção tomou conta do ginásio na Ilha do Retiro. A torcida entendeu o recado e entoou com força o apelido de Claudinete Oliveira. O pai, quem diria, num cochicho ao ouvido do repórter, prometeu tomar uma dose de uísque em caso de cesta da filha. Parecia final de campeonato.
Mas a bola, teimosa, fugia de Mô. A um minuto do fim o primeiro arremesso prendeu a respiração do ginásio. A ilusão do chuá não deu nem aro. Agora, restavam apenas 17 segundos. O técnico Roberto Dornellas pediu tempo para desenhar a jogada na prancheta como se fosse o último lance de sua vida. Era. Valia a vitória pessoal da filha que decidiu adotar.
O cronômetro soltou e a bola chegou em Mô a duras penas dentro do garrafão. Falta. Alvoroço. Primeiro, vibração. Depois tensão. Dois lances livres. O primeiro não entrou. O segundo, outra vez, teve cara de gol. Todas as companheiras correm para abraçá-la. Festejá-la. O pai invade a quadra e a abraça. Diz parabéns. Ela chora, desta vez, lágrimas de felicidade.

Orgulho da origem

20130224083258717639a A vontade de tirar os pais da realidade sofrida no Caranguejo é do tamanho do orgulho. Orgulho da origem, da comunidade em que cresceu. Sai firme o tom de voz se alguém ousa desmerecer o Caranguejo. “Lá tem muita gente de bem, trabalhadora. Conheço todo mundo. Apesar de tudo, me sinto em casa. Se deixo de ‘entrar’ um dia, morro de saudade.”

Muito antes de o basquete aparecer, Mô corria atrás de outra bola. “Cresci jogando pelada com os meninos. Cansei de apanhar, tomar canelada. Isso aqui é meu”, diz, orgulhosa. A cada beco, a cada esquina alcançada, a pé, Mô abre caminho para apresentar o lugar de onde veio. Com a bola  de basquete debaixo do braço, corta as vielas saudada por uma gente que retribui o orgulho do bem. Numa certa esquina, para. Aponta: “Olha ali a menina!”. É Késsia.
Késsia da Silva Xavier, 14 anos e 1,85m. Seis centímetros a mais que a própria Mô. Já faz mais de dois anos que é “adulada” para jogar basquete, mas não tem jeito. “Ela não quer”, diz Mô. Quer. Convencida pela mãe, Késsia aparecerá pela primeira vez na quadra do Sport horas depois. “Já levei muitos meninos daqui. Infelizmente, nunca vi um vingar. Os atrativos da vida por aqui atrapalham”, relata.
Mô é exceção à regra. Aos 27 anos, jamais engravidou. Filhos, só depois da carreira. O marido, que a namora desde a adolescência, compreende a prioridade. Mô é mesmo exceção. Nunca pensou em desistir. Não há exemplo maior para Késsia, cuja mãe, assim como dona Nadja Maria da Silva, a de Mô, perdeu um filho ainda jovem de morte morrida. “Assassinado. Foi pelo caminho errado”, diz a voz embargada de mãe. Nenhum idioma tem nome para quem sobrevive a um filho, já escreveu a jornalista Eliane Brum. Das maiores verdades da vida.
Késsia
À noite, mãe e filha acompanham Mô até a quadra de basquete. É dia de amistoso. Mais um na preparação do Sport durante a Liga Nacional. Da arquibancada, Késsia vê o exemplo no meio das feras. Jamais tinha pego numa bola de basquete antes de posar para a foto da reportagem, mais cedo. O jogo é acirrado. Mô sequer tem chance de entrar em quadra. Não tem problema. O arremesso mais importante da noite ainda será dado. Ao fim da partida, Késsia é apresentada ao técnico Roberto Dornellas.

Os "pais brancos"

O “pai branco” é carinhoso. Késsia arrisca os primeiros arremessos da vida, sob a instrução de Mô. Antes do primeiro “toque”, a filha procura o pai: “É só passar para ela o que você me ensinou a vida inteira, né?”. Roberto acena positivamente. Algumas tentativas e a bola cai. Fica a promessa de Késsia: voltar com a mãe, no dia seguinte, para começar a treinar com as meninas de sua idade. É o encontro do esporte com mais uma vida a ponto de ser mudada.

O recado dos traficantes era claro: quem ficar na rua depois das 23h, um minuto a mais, morre. O treino do Sport terminava perto disso, quando o toque de recolher soava mudo no inconsciente de cada morador do Caranguejo. Sem poder voltar, Mô dormia na casa de Roberto e Rosângela. Seus “pais brancos”. É assim que gosta de se referir ao casal Dornellas. Ele, técnico do time adulto do basquete feminino do Sport. Ela, psicóloga. O carinho resume a força da relação. Estreitada, dia após dia, ao longo dos últimos 11 anos.

Em dois deles, Mô sentiu o amor mais de perto. Justo quando estavam mais longe. Entre 2009 e 2010, o basquete feminino do Sport se desfez. Sem time, restou a Mô se virar para ganhar a vida longe das quadras, seja com a venda de camarões ou com outros bicos. “Se eu disser que Roberto deixou de me ajudar um mês sequer, é mentira”, diz, emocionada.
Sem treinar, Mô bateu nos 90 quilos. Não era preciso estar em forma para vender camarões. Se a perda do contato diário espaçou os encontros com Roberto, o sentimento, o cuidado, jamais dispersou. Mesmo quando à distância, o técnico nunca deixou que a relação esfriasse. Sempre se fez presente. “Ligava, cobrava os estudos. E tentava tranquilizá-la”, relembra.
Mô retribui o carinho. Seja com a confiança depositada em Roberto, o que muito o envaidece, seja com disposição dentro da quadra. Retornou ao basquete no primeiro sinal de fumaça lançado pelo técnico. Em setembro do ano passado, apresentou-se aos treinos com 18 quilos acima do peso atual. Tem trabalhado dia a dia para encurtar o abismo técnico que a separa de craques como Érika e Alessandra, pivôs como ela, mas com quase 20 centímetros a mais.

Quem dera todo jovem imerso na realidade de vida cortante de uma das comunidades mais violentas do Recife tivesse a mesma persistência e sorte de Mô. Falar em sorte pode parecer hipocrisia. Quando moça, Claudinete Oliveira perdeu para o tráfico dois irmãos. Assassinados. Ainda se viu jurada de morte, ela e toda a família, caso o irmão não aparecesse. A palavra sorte, aqui, traduz privilégio. Privilégio de simplesmente viver. Ainda por cima, viver do basquete. O que seria de Mô não fosse o esporte?

O caminho do bem

Claudinete foi apresentada ao basquete na adolescência. E o basquete lhe apresentou à vida

Sentada num dos becos da rua José da Bomba, em Afogados, bairro onde mora - área próxima à comunidade do Caranguejo, onde foi criada -, a atleta desvia o olhar em direção à noite que cai. Ela busca a resposta que demora a sair. “Não sei. Não sei o que seria de mim.”
O curso de Gestão da Qualidade na faculdade não faria parte da realidade. Muito menos o companheirismo diário de ídolos como Adrianinha, Érika e Alessandra, jogadoras de Seleção Brasileira. O basquete abriu as portas para Mô. Aos 27 anos, a pivô do Sport se emociona ao olhar para trás.

Bendito o dia em que uma vizinha de porta de sua mãe cumpriu a promessa feita e “esquecida” pelo pai. Seu Adilson ficara de levar a filha ao Sport inúmeras vezes. Tinha 14 anos quando a vizinha a pegou pela mão e levou-a ao encontro de Janaína, técnica do time infantil rubro-negro à época.
“Meu pai queria que eu fizesse judô, mas nunca gostei. Sonhava com basquete.” Chegaram à quadra, ela e a vizinha, “na cara dura”, relembra Mô. “Volte aqui com ela calçada de tênis amanhã”, foi a resposta. O veredicto mudaria a vida da menina para sempre.

Lá se vão 13 anos desde os primeiros passos e arremessos. Em pouco mais de uma década, o basquete sempre foi norte e refúgio. Não demorou para que começasse a retribuir tanta dedicação. Primeiro, por volta dos 15, 16 anos, vieram as bolsas de estudo nos colégios da rede particular de ensino. Mais tarde, a bolsa na faculdade e a profissionalização como atleta no próprio Sport.

Hoje, ainda que continue a vender camarão por encomenda, é do basquete que Mô tira o sustento. Contas pagas graças ao suor derramado na quadra desde os 14 anos. O basquete, além de tudo, a fez conhecer lugares e pessoas incríveis. Foi atalho precioso numa estrada que se apresentava perigosa. O basquete mudou o destino de Mô.

"Saudade" do que ainda não viu

Por trás do sorriso fácil, Mô esconde um vazio. Seu Adilson Santana de Oliveira, o pai de verdade, “não liga” pra basquete. Jamais a viu jogar. A perda trágica dos dois filhos, os únicos homens, ressecou o velho pai. Nem Mô sabe explicar o motivo da ausência. “Nunca perguntei, mas queria muito que ele fosse me ver um dia.” Pela primeira vez, sorriso dá lugar a choro. Primeira e última. Mô não derramaria mais nenhuma lágrima.
Amanhã, seu Adilson tem mais uma chance. O Sport enfrenta o Guarulhos, em casa, já classificado para as semifinais. Significa que Mô tem muito mais chances de entrar em quadra. Irmãs, sobrinhos e amigos irão engrossar a torcida rubro-negra; quem sabe o pai. A mãe, dona Nadja Maria, só apareceu uma vez até hoje.
Se depender das companheiras de time, Mô deve entrar em quadra. O técnico Roberto Dornellas relembra um episódio recente marcante. “Antes do jogo lá no Maranhão, a psicolóloga exibiu um vídeo. Terminava com uma mensagem dela, dizendo que se não ganhássemos, ia apanhar todo mundo na volta. Em vez de rir, as jogadoras seguraram as lágrimas. Porque era ela que estava falando e, desta vez, não havia sido relacionada para a viagem”, conta.

Fonte: Superesportes 

3 comentários:

Anônimo disse...

Muito bacana história de Mô,exemplo de atleta,parabéns!

Anônimo disse...

É prá isso que esporte serve, para dar oportunidades e esperanças de vidas melhores, principalmente ofertando estudos para atletas carentes e preparando-as para o futuro, isso deveria servir para nossos políticos de plantão.

Anônimo disse...

É um exemplo de vida pra muita gente. Vivemos num apartheid social, onde poucos têm muito, e muitos não possuem as condições mínimas para uma vida digna. É compreensível o porquê alguns enveredam por outro caminho, mas é louvável o caminho escolhido pela MÔ. Parabéns!
Sport, minha vida. Eterno Amor.