terça-feira, 3 de janeiro de 2006

Super Trunfo

Melchiades Filho

Tirando os tristes, os sebentos e as mocréias, ninguém se escondia no quarto. Brincávamos na rua. O único computador de que se tinha conhecimento era o que monitorava, entre um curto-circuito e outro, o "Túnel do Tempo" na TV. Eu mijava de porta aberta, fora do alvo e orgulhoso.
Mas, antes que a puberdade chegasse e o fecho do banheiro virasse meu confidente, eu já gostava dos momentos só meus.
Não me lembro direito qual foi o gatilho. Se os clássicos da literatura que a Abril editou em capas supercoloridas; se os discos de rock pauleira que o Marcão indicou; se a enciclopédia ilustrada de sexo que papai médico comprou.
Mais ou menos nessa época, o final dos anos 70, ganhei o baralho de presente. O objetivo do jogo era esvaziar o monte do adversário, cantando uma das informações estampadas na carta da vez e torcendo para que o valor dela fosse o mais alto do "round".
Com o tempo, peguei o macete. Descobri os pontos fortes e fracos de cada "card" e só não me tornei imbatível por causa do curinga solitário que estampava o nome do jogo e prevalecia de antemão em quase todas as situações.
O tal do Super Trunfo dizimava a lógica do jogo _e garantia a graça. O oponente podia estar na miséria, reduzido a poucas cartas, mas, se ele tivesse em mãos o curinga, nada estava definido.
Talvez por isso eu preferia jogar sozinho, simulando os rivais e testando múltiplas personalidades à prova de remédio faixa preta.
Fiquei viciado. Passei a colecionar baralhos: F-1, carros esporte, jatos comerciais. Adorava o dos aviões de guerra. O Super Trunfo era um bombardeiro enorme e invocado, cujo nome parecia com o da guitarra do Jimi Hendrix...
Fazia tempo que não me recordava do brinquedo. Até a semana passada, ressaca natalina, quando ele reapareceu duas vezes.
Primeiro, quando rasguei o embrulho e vi que a Grow lançou uma versão com atletas de basquete. (Allen Iverson, armador multitalentoso, levou a melhor sobre outros cobras da NBA e foi escolhido como Super Trunfo.)
Segundo, quando escrevi o balanço de 2005 para a edição de sábado e reparei nas mais recentes notícias do basquete brasileiro.
Uma rodada atrás da outra, a CBB vem derrotando a Nossa Liga, fundada pelos clubes que se fartaram dos pedágios e favores cobrados pela confederação.
Todos os semifinalistas do Paulista são fiéis à CBB. O Flamengo, que venceu o Estadual com uma virada extraordinária sobre o time-símbolo do movimento "rebelde", também. O líder invicto do Nacional feminino também.
Os melhores pivôs da Nossa Liga negociam virar a casaca _Tischer, de São José dos Pinhais para Uberlândia, e William, de Araraquara para o Ajax.
Por fim, a Justiça barrou pela segunda vez a tentativa da Nossa Liga de parar o campeonato concorrente com o argumento de que o regulamento fora prostituído.
Será que Oscar, Paula, Hortência e Marcel, ídolos reunidos em torno do projeto autônomo, têm em mãos um Super Trunfo? Tomara que sim. A solidão do banheiro não me interessa mais.

Fonte: Folha de São Paulo

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