quarta-feira, 18 de dezembro de 2002

Kelly No Paraíso

No último dia 27 de novembro, a pivô brasileira Kelly Santos foi alvo de uma extensa reportagem publicada pelo jornal Le Berry, da cidade francesa de Bourges.

Uma matéria muito interessante que enfoca a adaptação da jogadora ao seu novo lar.

Fiquei feliz em ler a matéria e perceber o sucesso de uma estrangeira e a estabilidade que essa temporada européia está lhe proporcionando.

Não resisti e acabei traduzindo a entrevista por completo.

E aviso - Essa matéria não existiria sem a mão do meu amigo Laurent, já que minha intimidade com o idioma francês não é lá das maiores.

Com vocês, Kelly - De São Paulo a Bourges.




Kelly - guerreira na quadra, mas tímida e simples na vida


Assim é Kelly Santos, a primeira brasileira a jogar no Bourges. Com a ajuda da tradutora Cindy Ferreira, Kelly fala sobre a adaptação ao estilo de jogo do Bourges, sua vontade de aprender, o aprendizado do francês, sua paixão pela culinária francesa e - claro - sobre a família que ela deixou no Brasil.

Em Bourges, Kelly está estreando com brilho e o time não pode reclamar disto.


Kelly - uma brasileira em Bourges

Brasil - tão perto, tão longe


Ela trouxe no coração a família, o Brasil, os amigos, as praias e os churrascos que duravam até de madrugada. Mas a pivô paulista se sente muito bem em Bourges. Ela está aprendendo francês muito rápido, descobrinfo queijos e vinhos e a vida de uma jogadora de basquete européia.


Tímida, modesta e charmosa


Imagine chegar de São Paulo, seu sol, suas praias e 15 milhões de habitantes para uma pequena cidade como Bourges, de 100.000 habitantes. Imagine ser arremessada a um universo desconhecido. Tudo isso Kelly sentiu, mas se adpatou à sua nova vida como a exploradora novata de um novo mundo. Assim é Kelly: tímida, como [a jogadora francesa e companheira de Kelly no Bourges] Cathy Melain, mas com uma enorme vontade de aprender e descobrir.

Ela está trabalhando seu Inglês e seu Francês com empenho, mas confessa achar a língua francesa difícil: "Quando você aprende Francês, você pode aprender qualquer outra coisa." diz. "A não ser Chinês." completa.

Ela joga basquete só há 10 anos, mas o esporte já a levou aos níveis mais altos. Kelly aprecia Bourges pela sua tranquilidade e pelos bons vinhos e queijos também.

Sensível e charmosa. Cheia de bom humor e mais solta assim que a entrevista transcorria.

Kelly é uma atleta alta e forte, mas ela mesmo acha que não tem um jogo físico tão bom quanto suas habilidades naturais lhe permitem. Mas talvez suas adversárias não estejam dizendo o mesmo.

Kelly tem muita força de vontade, uma habilidade afiada e um excelente aproveitamento de arremessos. Em apenas 10 jogos, a garota se tornou o elemento surpresa da "casa laranja" [como o time de Bourges é conhecido], conquistou a todos e marcou seu lugar no garrafão. E isso é apenas o começo.

Kelly está sempre ocupada com suas aulas de Inglês e Francês e, é claro, com basquetebol. Ela nem tem tempo de pensar no Brasil. Mas quando tem um intervalo nos compromissos, Kelly visita o namorado Daniel.

"Bourges é uma cidade pequena e graciosa. E eu adoro as pessoas, os restaurantes e as lojas daqui. Na realidade, eu me sinto em casa em Bourges."

"Acho que fiz uma ótima escolha ao vir pra Bourges. Eu já sabia da reputação do time desde 1995, quando Bourges foi ao Brasil jogar o Mundial Interclubes. Eu era muito nova naquela época, mas já estava contente de jogar entre o alto nível."

"Depois descobri que o time ganhou a Euroliga várias vezes, que era um clube profissional e que faz um trabalho muito sério aqui".

"Estava consciente que se eu quisesse fazer algo aqui, teria que ser muito sério. Não hesitei quando tive a oportunidade."

"Então, eu não me surpreendi com o volume de trabalho. Estava ciente disso. Tudo aqui é feito para que as atletas estejam nas melhore condições: treinos, cuidados de saúde e tudo mais."

"O fato de Bourges ser uma cidade pequena faz tudo muito próximo de você. Você não perde tempo com transporte. Muito diferente de São Paulo, com 15 milhões de pessoas, engarrafamentos, poluição e problemas reais que te estressam. Aqui, posso ir a qualquer lugar a pé. É um verdadeiro conforto."

Kelly é fã dessa Douce France. Aqui a vida é diferente. O Brasil é uma mistura de povos e culturas. Na França, as pessoas são mais tradicionais, porque a vida é fina e doce. Muito mais tranquilo também. Gostaria muito que minha mãe viesse pra cá. Seria melhor pra ela do que viver no Brasil. Minha família é minha grande perda lá."



"Outra diferença é que no Brasil tudo acaba em festa: praia, churrasco, música e a festa já começou. Claro, que é um pouco incompatível com a vida de uma atleta de alto nível. Mas a mesma coisa acontece com a Culinária Francesa! Adoro os queijos e vinhos daqui, mas tenho que me policiar." diz rindo.

"Aprendo Francês e Inglês por enquanto e todos fazem um esforço de conversar devagar. Como sou um pouco tímida, tinha dificuldades no começo, mas melhorei. Sigo as leituras com Boba (Slobodanka Tuvic), Luba (Drjlaca), Vedrana (Grgin-Fonseca) e Alicia (Poto)."

Kelly diz que precisa de tempo para se adaptar. Ela, que praticamente troca de clube a cada ano, gostaria de passar um longo tempo aqui. E se o presidente concordar, por que não em Bourges?

"De qualquer maneira, para se levar uma carreira no basquete é melhor na Europa. No passado, era possível no Brasil. Eu podia até ajudar minha família. Mas a crise econômica diminui os investimentos no esporte feminino."

"Deixar minha família, meu país não foi fácil, mas posso assegurar que aqui meu futuro será menos difícil. Estou pronta para os sacrifícios e esforços para vencer."

Uma forte determinação. Mas o Brasil só está longe na distância. Seu namorado Daniel está sob sua vigilância.

"É verdade que sou ciumenta. Ele sabe. E não gosto quando ele fica olhando pra uma francesa bonita. Mas na verdade, eu é que mais presto atenção nele. Quando você está apaixonada, tem que ser cautelosa (risos)."

Para o Brasil, ela retorna no Natal. "Meu pai morreu há 13 anos e minha mãe não trabalha. Meu irmão é um advogado e uma irmã é professora (um trabalho que ela adoraria ter, não estivesse envolvida com o basquete). Seria um grande prazer revê-los. Tenho muito a contar-lhes."

Até o Natal, há muitas partidas a vencer com o Bourges. Muitas lições de Francês. Muitos treinos com o técnico Olivier Hirsch e com suas colegas.

"Semana passada, fui a Paris. É uma cidade maravilhosa, mas não tive tempo suficiente pra visitá-la e meu tornozelo estava dolorido, mas fui ao Arco do Triunfo e fiz compras."

"Geralmente vou ao cinema, porque é uma boa maneira de aprender Francês. Gosto de ler também e navegar na Internet. Meu maior problema é que já terminei os livros que trouxe do Brasil."

E depois do basquete, kelly?

"Gostaria de jogar mais 10 anos na Europa. Depois, me vejo no Brasil, com filhos e abrindo um salão de cabelereiros e uma loja de roupas onde se pudesse achar peças para mulheres altas (risos). E será uma boa oportunidade para uma festa, um longo churrasco, amigos e queijos e vinhos franceses."


EU AMO

Daniel, que me acompanha em Bourges e, por isso, tirou férias de 2 anos
Viajar, mesmo que eu não goste muito dos transportes
Queijo
Comer, porque sou gulosa
Pessoas simples e modestas, como as que eu tenho encontrado aqui
Pessoas engraçadas e de mente aberta


EU ODEIO

Café
Lavar pratos
Pessoas que não são simples
Pessoas mentirosas



Kelly em versão basquetebol

"Eu vou devagar, mas com certeza alcanço meu lugar"


São apenas 10 anos de jogo com a bola laranja, mas Kelly já mostrou uma ascenção tremenda na seleção brasileira e agora em Bourges, onde ela marca sua posição.

Como você começou no basquetebol?

Quando jovem, eu tinha problemas de saúde. Meu médico me deu um tratamento e me apresentou à melhor jogadora do Brasil: Hortência. Eu tinha treze anos e 1,87 e comecei a jogar no clube dela: Sorocaba.

Seus progressos forma bastante rápidos e você já estava na seleção com 17 anos. Você estava pronta pra isso?



Na verdade não. Algumas jogadoras, mais velhas que eu eram mais lembradas e haviam começado antes no basquete também. Eu não acreditava que pudesse ser selecionada pra jogar nesse nível. Olhe só: com 13 anos, eu nunca tinha pego uma bola ou praticado um esporte!

Você acha que você é agora uma das atletas da base da seleção brasileira?

Só sei que sou mais nova que a maioria das jogadoras e que tenho a sorte e a oportunidade de jogar numa seleção como essa.

O que representa o basquete feminino no país do futebol e do Rei Pelé?

No começo, é verdade, não foi fácil para o basquete feminino. Mas como todos os grandes resultados, nosso esporte é mais respeitado e tem agora um espaço pequeno dentro do esporte nacional. Claro que comparado ao futebol, não é fácil competir, mas temos pessoas mantendo nosso esporte nas quadras.

Na sua carreira, quais foram as atletas que te impressionaram e as que você gostarim de jogar com ou contra?

Razija Mujanovic, com quem eu joguei 2 anos. Ela me ensinou muito, já que ela joga como pivô também. Claro que Janeth e Hortência também. No Bourges, eu gosto muito da Cathy Melain e da Yannick Souvré. São jogadoras inteligentes, que usam sua experiência para ajudar as novatas. Sempre presto atenção ao que elas dizem, porque seus conselhos são bons.

Fora o basquete, que outro esporte você teria feito?

Talvez o vôlei, mas nunca tentei.

Entre treinamentos e jogos, quais as diferenças entre Brasil e França?

No Brasil, você treina muito, mas em Bourges e na França, insistimos muito no aspecto físico. No Brasil, velocidade é o mais importante. Na França também, mas a técnica individual e coletiva é ainda mais importante. Já aprendi muito e adoro isso.

Você prefere a posição 4 ou 5?

Não há diferença pra mim. Gosto de jogar nas duas. Não há problema nenhum pra mim em ser escalada pra jogar nessas posições.


Quais são seus pontos fortes e os em que você precisa melhorar?

Odeio falar do meu próprio jogo. Acho que me esforço muito na defesa e na performance de arremessos. Na semana passada, fiz 139 cestas em 200 tentativas de meia distência durante os treinos. Mas eu tenho que aprender a usar mais meu potencial físico. Eu não o uso o bastante. Mas trabalho para isso.

Como é a sua relação com Boba Tuvic [a iugoslava Slobodanka Tuvic, companheira de Kelly no Bourges]?

Nós nos entendemos muito bem, Em Vilnius, durante uma partida da Euroliga, nós conseguimos acertar maneira correta de jogarmos juntas. Ficamos muito contentes.

Se Bourges fosse um time brasileiro, estaria apto a ganhar o título?

Acho que muito facilmente. Teria apenas que se adaptar a um outro jeito de jogar basquete.

O que dizer do começo da temporada?

Temos três jogadoras novatas no time, então a adaptação não terminou, mas o nível já está muito alto.

E agora com a ausência de Vedrana, que também fala português, como você faz?

Apenas me concentro bastante e nada mais.

Antes de vir para a Europa, que clubes você conhecia e com quais já tinha contato?

Eu conhecia o Como [da Itália], Valência [da Espanha] e Ruzomberok [da Eslováquia] e quase todas as equipes da Euroliga. Tinha convites dessas três equipes, mas preferi vir para o Bourges.

Você já jogou contra o Valencienes [último campeão da Liga Francesa], o time número um da Europa? O que você acha deles e especialmente da Nicole Antibe, que você substituiu no Bourges, depois que ela foi para o Valenciennes?

Valenciennes é um time muito bom, o qual temos que respeitar, mas já ganhamos delas [na primeira fase da Liga] . Acho realmente que estamos no mesmo nível. E Nicole Antibe é forte.

Quais seus planos para o futuro próximo e distante?

Quero progredir. Quero ganhar a Euroliga e jogar mais dez anos na Europa. Meu sonho é ganhar esta Euroliga e, é claro, os Jogos Olímpicos. E quero ser feliz também.


(Le Berry, 27.11.2002)
(Agradecimentos a Laurent D.)


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