Entre as passagens mais marcantes da conquista do Mundial de Basquete há quinze anos, estão as atuações de Leila Sobral. Mais conhecida até então por ser a “irmã da Marta”, a pivô saiu do banco (aos 19 anos) com uma força incomum nas partidas decisivas contra Estados Unidos (13 pontos, 8 rebotes e 4 recuperações) e China (14 pontos, 5 rebotes, 4 recuperações, 4 assistências). Sua participação avassaladora ficou eternizada nos gritos de um emocionado Luciano do Valle e na sua escolha como revelação do torneio. Essa impressionante estréia internacional é seguida por um enredo de porte semelhante: dois anos mais tarde, ganhou a prata em Atlanta (8 ppj). Em seu segundo Mundial, ficou na quarta colocação (Alemanha, 1998 – 11,8 ppj). Depois do torneio, resolveu deixar o ‘berço’, em Santo André, e se aventurou numa breve passagem na WNBA e no basquete grego. No ano seguinte, ao retornar a seleção no Pan-Americano de Winnipeg (9,4 ppj), teve uma lesão grave no joelho. A jogadora iniciou um processo contra o Comitê Olímpico Brasileiro (COB), alegando falta de apoio na recuperação. Foram quatro anos de recuperação lenta, durante a qual a sensação era a de que o basquete havia perdido Leila. Mas a pivô voltou à luta em Santo André e foi novamente chamada para a seleção, da qual acabou titular em Atenas (2004 – 3,7 ppj). Na entrevista abaixo, Leila, aos 34 anos, revê sua trajetória, e mesmo dividida entre os papéis de dona-de-casa, mãe, administradora de um buffet e a gravação de um CD gospel, surpreende com um “Quem sabe eu não jogue no Campeonato Nacional?”.
1) Leila, assim como eu, muitos amantes do basquete ficaram felizes em revê-la, após uma longa ausência, na homenagem da CBB às campeãs mundiais. Por onde você tem andado e a que tem se dedicado desde o retorno da Espanha? No ano passado, chegou a ser noticiada uma negociação sua com a equipe de Florianópolis para a disputa do Campeonato Nacional, que não se concretizou. Sua carreira como jogadora de basquete está encerrada?
Realmente estou há muito tempo sem competir. Tenho investido meu tempo em muitas coisas. Fora as responsabilidades como mãe e dona de casa, tenho um buffet (o Buffet Sobral) e participo de uma ONG, junto a membros da minha igreja, que atende crianças e moradores de rua. Ainda estou dando andamento a um grande sonho, que é a gravação de um CD gospel.
Eu joguei em Santa Catarina e tanto a [técnica] Marli, como as meninas me receberam muito bem e tenho uma consideração enorme por elas. Por isso fiquei triste, já que não conseguimos chegar a um acordo financeiro para que eu disputasse o Nacional. Mas eu ainda não consegui encerrar minha carreira. Sempre que penso em parar, aparece uma proposta tentadora... Tenho alguns convites para jogar fora, mas preciso me preparar e enfatizar a parte física. E acho que só conseguiria isso com um acompanhamento dentro de uma equipe. Quem sabe eu não jogue no Campeonato Nacional?
Em relação à homenagem, foi muito emocionante rever as meninas daquela geração. Na minha cabeça por todo aquele dia ficou passando um filme dos momentos que vivemos juntas. Já no caminho para a Arena, me sentei do lado da Paula e relembramos vários fatos divertidos daquela campanha.
2) Sua participação no Mundial foi simplesmente inesquecível. Aqui do Brasil, não pudemos acompanhar os jogos da primeira fase. Mas, nos jogos finais, sua atuação foi absolutamente decisiva em fundamentos como recuperações e rebotes, em que a seleção era muito carente. Queria que você dividisse conosco as lembranças desse momento e nos contasse de onde surgiu essa força surpreendente para uma garota de 18 anos encarar lendas do esporte como a americana Katrina McClain e a chinesa Zheng Haixia.
Na verdade, eu nem sabia quem era elas [Risos]. Apenas fiz o que eu melhor sabia fazer. A recuperação de bola sempre foi uma característica do meu jogo. E naquela época, eu não tinha um arremesso muito bom. Mas isso não era problema, porque a seleção tinha jogadoras experientes que exerciam essa função.
Acabei ficando muito surpresa ao ser escolhida como destaque pela organização do Mundial. E a partir daí, passei a entender melhor que o basquete não é um esporte que se vença só com o ataque, mas também na defesa.
Ainda hoje me lembro de alguns momentos com a chinesa Haixia. Meu Deus, como era grande! Mas felizmente era lenta, e pude aproveitar esse ponto fraco dela.
3) A ausência de sua irmã, Marta, havia sido uma das grandes polêmicas antes do Mundial. Dois anos depois, vocês duas estiveram juntas na também bela campanha da prata em Atlanta. Me recordo de uma matéria em 1993, na Copa América, na qual vocês comentavam que até então nunca haviam dividido a quadra (quando uma entrava, a outra estava no banco). Como foi esse reencontro coroado com uma medalha olímpica?
Sempre foi um sonho meu poder atuar com as minhas irmãs. E foi muito bom estar com a Marta, em Atlanta. Ela é uma irmã protetora e isso me dava uma segurança maior.
Admiro muito a Marta. Acho que na posição dela, foi a jogadora mais técnica que já tivemos.
No pódio, tive um ataque de choro. Chorava de alegria. E ela estava lá para me abraçar. Penso que se ela estivesse no Mundial, as coisas pudessem ter sido mais fáceis.
4) Por falar em família, você faz parte de uma muito rica em grande atletas. Além de você, Marta, há ainda a Márcia e o Jéferson. Você acha que a família já nasceu com o talento para o basquete ou que foi uma habilidade desenvolvida a partir das oportunidades abertas pelo destaque que a irmã mais velha obteve?
Acredito muito em dom, em talento nato, que vem de Deus. Mas há talentos que desenvolvemos a partir de treinamentos. Acho que minha família foi privilegiada. Iniciamos cedo na modalidade e isso ajudou muito. E acima de tudo, amamos muito o que fazemos e isso ajuda a superar todas as dificuldades.
5) Logo após seu segundo Mundial (quarto lugar, Alemanha, 1998), você acabou saindo do seu país: primeiro para uma rápida passagem na WNBA, e após no basquete grego. Hoje como você enxerga essas experiências, sua maturidade na época para enfrentá-las e o impacto sobre suas condições físicas?
Minha saída foi essencial naquele momento. Eu precisava crescer como atleta. Ficava muito na barra das saias da Laís e da Arilza, que são como segundas-mães para mim.
Era necessário mostrar que eu poderia me dar bem em outras equipes. Foi muito duro. Sofri bastante. Mas crescemos mais com as dificuldades do que com as conquistas.
6) No ano seguinte, ao disputar o Pan-Americano (1999), você teve uma lesão grave que a tirou das quadras e deu início ao momento mais complicado da carreira. Em função da lesão, você abriu um processo indenizatório contra o COB. Que fim teve esse processo? Você se recuperou plenamente daquela lesão ou ela acabou definitivamente mudando sua condição de jogo?
Quando falei em dom de Deus, me referia a esse episódio. Fiquei quatro anos sem poder caminhar normalmente,tive uma gestação, mas ainda assim superei essa grande frustaçâo. Só mesmo para quem acredita em milhagres. Foi o momento mais difícil da minha vida. Estava no auge da carreira, com vários planos. Não me conformava em encerrá-la daquela forma. Os médicos já tinham decretado a minha sentença e advertido que se um dia eu voltasse, nâo seria mais a mesma.
Depois de quatro anos, voltei a treinar em Santo André, com a Laís e a Arilza. No começo, senti muita dificuldade. Depois passei por outras equipes, até ir para Espanha, onde fiquei por três anos. Meu jogo mudou sim. Ganhei mais consciência e maturidade. Mas nunca vou jogar da mesma maneira que jogava quando tinha dezoito anos, apesar de não ter nem sentir absolutamente nada no joelho.
Em relação ao processo, troquei de advogado, mas ele segue na Justiça.
7) Poucos acreditavam que você pudesse se recuperar e voltar a jogar em alto nível. No entanto, você surpreendeu a todos e foi titular da campanha da seleção nas Olimpíadas de 2004 (quarto lugar, Atenas). Qual foi sua maior motivação para a recuperação e quem foram as pessoas fundamentais nesse processo? E qual foi a sensação de disputar a segunda Olimpíada, depois de tantos problemas, mesmo sem voltar a ganhar uma medalha?
Esse retorno foi uma responsabilidade em dobro. Parecia que estava sendo convocada pela primeira vez. Precisava mostrar que estava bem, mesmo não estando em meu peso ideal. Tinha que mostrar a todo instante que podiam confiar em mim. Sei que foi muito difícil receber o crédito da comissão técnica.
A minha situação ali era de uma novata. Até mesmo a ajuda de custo que recebi no período foi igualada ao valor recebido pelas novatas. Os títulos e a experiência haviam mesmo ficado no passado.
Eu sabia que se ficasse entre as doze, já teria sido uma grande conquista. Acabei como titular, o que me surpreendeu também, pela qualidade do grupo. Esperava entrar alguns minutos e torcer.
Realmente, a alegria só não foi maior pela falta de uma medalha. Na minha opinião, faltou um pouco mais de confiança a algumas jogadoras.
8) Apesar de ter sido titular em Atenas, você não voltou a ser chamada mais pela seleção nas competições seguintes. Você chegou a ser comunicada dos motivos dessa exclusão? Isso chegou a te magoar?
Eu também já me perguntei várias vezes qual teria sido o motivo. Era comum as pessoas me abordarem perguntando por que eu não havia aceitado mais ir para a seleção. Ficava surpresa, porque continuava pronta para ajudar a seleção.
9) Suas últimas temporadas foram no Celta, da Espanha. Gostaria de saber dessa sensação de voltar ao jogar no exterior, anos depois e como foram essas temporadas finais?
As temporadas na Espanha foram muito boas. Fiquei três anos no mesmo clube, em uma cidade maravilhosa. Tive facilidade de adaptação ao estilo de jogo, era a mais experiente na equipe e tinha muita responsabilidade.
Só não pude continuar lá, porque o clube não estava em dia com a documentação, o que levou a essa separação.
10) Você mora em Santo André, uma cidade que mantém um trabalho no basquete há muito tempo, no qual você se formou e que você defendeu por longo tempo na carreira. Gostaria de saber se você acompanha o basquete, se mantém contato com a técnica Laís Elena. E, por fim, quais as suas impressões e expectativas sobre a troca de comando na CBB e o início de trabalho de Hortência e Janeth nessa nova gestão?
Sou suspeita para falar de Santo André. Amo a Laís e a Arilza de paixão e sei o quanto elas sofrem para manter o basquete na cidade. Tenho acompanhado alguns jogos e torço muito por elas.
Precisamos de algo novo no basquete. Desde que comecei a jogar, o esquema é o mesmo, as pessoas são as mesmas. Será bom dar uma oportunidade para quem sabe o que passa um atleta. A Hortência e a Janeth têm tudo para fazer a diferença. Só depende delas. As dificuldades serão grandes. Mas elas nos ajudarão muito, se não se “assentarem na roda dos escarnecedores”.
11) Bate-bola para encerrar:
Uma cidade: Santo André
Uma música: I believe I can fly
Uma mania: estralar os dedos e os pulsos
Um filme: Deixados para trás
Uma comida: macarronada
A bola que eu chutei e caiu: Em um jogo na Espanha, estávamos perdendo por dois pontos. Recuperei a bola e faltavam cerca de sete segundos. Poderia ir para a bandeja, mas parei e chutei um pouco antes da linha dos três. E caiu.
A bola que eu chutei e não caiu: Um lance-livre. Ninguém merece errar um lance-livre em um jogo decisivo.
O jogo inesquecível: a final do Mundial, em 1994.
Um arrependimento: ter agido mais pela emoção que pela razão.
Um título em clubes: o Campeonato Paulista de 1995, pela Lacta/Santo André.
Um técnico: Laís Elena
Uma marcadora implacável: Leila Sobral
A melhor jogadora que eu vi jogar: a Marta Sobral
Uma estrangeira: a grega Evanthia Maltsi
Um sonho: o surgimento de uma seleção com grandes jogadoras, como no Mundial de 1994.